quarta-feira, 29 de março de 2017

MÃE, DE YULIANA ORTIZ RUANO

Mãe,
sonho com o meu cadáver todas as noites.
Do meu ventre penduram dous seres que não quiseram nascer.
Renunciei a tudo o que me fazia infeliz.
Renunciei a tudo.
Renunciei.
Só até que ťe arrancam com as duas mãos o esterno
abres as pálpebras
e varres as crostas secas
que tapizam o chão do teu quarto.
Só até quando alguém mete a mão no teu embigo
e extrai uma víscera sangrante
que lateja quente no ar
convertes em argila a casa
e tentas moldar nela
ou esmaga-la de vez.

Mãe,
tenho vinte e três anos
mas parece um século.

Sonho com o meu corpo teso
todos os dias.
Renunciei a tanto, mas
por que esta vontade chorar?
Por que as feridas
suturadas abrem e sangram outra vez?
Por que o silêncio
disseca os meus ossos?
Por que a porta está ainda fechada
diante do meu rosto?
Renunciei a mim.
Renunciei.
Abandonei-me em cada tarde.
A Yuliana fica à minha espera
nalguma longínqua estação.
Impaciente;
come as unhas,
os dedos.
Yuliana come-se.

Mãe,
continuo a falar de mim
para a gente
como se isso interessar.
Como se a coberta se erguer
e me disserem
que pare de chorar,
que tudo foi uma brincadeira pesada,
que agora posso rir
às gargalhadas de mim
e do meu ventre.

Que tudo isto foi uma brincadeira
muito pesada.
Que isto não sou eu
que para além da coberta
há vida a sério.
Mãe,
renunciei a tudo quanto me fazia infeliz.
Por que a muralha continua a crescer?
Mãe,
não devi sair do teu ventre.
Olha os meus ossos.
Olha a sua fragilidade.
Olha os seus dias
que pousam lilás
sob os meus olhos.
Olhas as minhas mãos
transparentes.
A muralha tem vida.
Ao meu redor tudo exala mais vida do que eu.

© Texto: Yuliana Ortiz Ruano
© Tradução: Xavier Frias Conde

segunda-feira, 27 de março de 2017

SEGUNDO ENCONTRO E OUTROS POEMAS DE KARINA PALACIOS


SEGUNDO ENCONTRO

Evocar a tenrura
Em resposta ao medo
Atravessar o limiar do possível
Para o mistério
Sem o futuro interessar
Sem a história
Nem prosseguir
Nem desaparecer
Nem se deter

Sem alterarmos
O olhar
A razão
Os sentidos
O tempo

Atravessar o cataclismo
Até o seu centro
O melhor
Descobrir         o único abeiro
E no olho do furacão
Intacto ali
Imperturvável
O assombro
Servido quente
Sobre uma mesa de chá
Posta para nós os dous.

SUSPENSO

Amo-te disse
E pôs fim à história

E logo
Ela brotou num sorriso

Mas não era este
O amor tépido do beijo
Mas o outro
O de sempre
Já conhecido

De acompanhante firme
De auxílio urgente
De palavra certa

Amo-te disse
Pôs fim ao tempo
À hesitação do destino
Pôs fim à espera
Inaugurando
Outra suspeita
De despedida


QUIMERA



As tuas costas perseguem-me em sonhos
como ícone do inabordável
como heraldo do desejo

Contorno improvável
De um destino
De uma outra vida

Os teus braços
Lar da minha saudade
Sem nunca terem sido meus

Os teus braços
Promessa de refúgio

Meus
Por direito
Por estranhos
Por distantes

Os teus braços

… A tua voz

Profana
Precisa
Mordaz

A tua voz
Agoiro de beijos
Banidos

Dança amatória
Do teu alento e da minha pele

Desafio ao meu ventre

A tua voz
Generosa aos meus ouvidos
Ávida de carne
Húmida de carinhas
Intransigente
Estremecida
Ingénua no seu senhorio

A línha complacente dos teus dedos
Prefigura os meus
Muito antes do tacto

Ourives do meu corpo

Mais do que as palavras
Mais do que as carícias

Sou
O lugar que cabe
Entre o sonho e o que não foi

© Texto: Karina Gisselle Palacios
© Tradução: Xavier Frias Conde

domingo, 5 de março de 2017

TRÊS POEMAS DE OSWALDO GUERRA

DESCENSO À PRAIA, UMA MANHÃ DE TRABALHO


Abro-me ao Passeio por entre ruelas
multicolores, ao desenho diáfano
da praia e do seu mar agora tranquilo.
Estou dentro da praia, cegado
por tanta claridade, afagado
pelo ar tão calmo. É como se não houver
ninguém (crianças, anciãos quase quietos):
o silêncio fica longe, adormecido.
Descalço os pés. Afundo ao instante
as minhas dedas no fino grão. Entro.
O mar fala para os banhistas, sussurra
com a sua língua minguada uma inquietante
promessa, arrola os seus corpos salgados,
para penetrarem no seu enorme ventre.
Toca-me a água. Está fria. Vira espuma.
Atrás fica o Passeio, as suas casinhas
baixas e mais para a frente a monstruosa
cidade, o seu barulho portuário, as suas ruas.
Apoio a cabeça até sentir
o céu, e apenas sinto o céu por cima.
Tudo quanto nele há fica escondido
nos grãos da minha praia, oculto
nos seus castelos leves, nos gritos
acompassados daquele vendedor de barquilhos,
na voz das sereias voluptuosas…
Ficarei o resto do dia
para ver que mais escuto.

(De Un rumor bajo la rama, 2012)


CRÍTICA DA BELEZA
[Mito do seixo rolado e a areia]

Quando entardece não é apenas a derradeira luz, mas é o som que se impõe. Perante um mar-onda o seixo rolado, muito antes do que arenisca, bate-se a si próprio e os seus outros infintas vezes, até alcançar certa sinfonia. Quem vir o ruivém crê saber —ah, pequeno deus— da mais elevada beleza, até que aos poucos o calor do sub-trópico desce por um orquestrado rumor. Diminuto instante em que Aquilo e Um somos quase a mesma cousa, embora não o saibamos. Roda e volta, roda como seixo sem vermos absolutamente nada com os olhos do prazer. Prazer era o sol quente que sexuava a nossa pele formosa. Prazer era.

Os litofones fazem agora o seu chamado antes se tornarem areia silenciosa. Jamais serão vistos à noite, mas serão o pulso que, apenas por um instante —na certeza que já o Eros e a Vénus praieira não são senão despojos de Música neste lar africano—, darão sentido ao coração que quiser libertar-se do corpo.



(De Muerte del ibis, 2013)

PALAVRA LUZ

Invejo o calígrafo sufista que pacientemente engasta uma palavra em outra
para se aproximar do resplandor da montanha sagrada,
enquanto eu procuro com a estranha costura entre uma e outra palavra o sentido de uma vida

(De Si existe el árbol. Cuaderno iraní, Inédito)


© Texto: Oswaldo Guerra
© Tradução: Xavier Frias-Conde